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Entrevista CERLALC: “Os desafios na criação de políticas públicas de leitura no Brasil”

Autor
Coordinación Comunicaciones
Data
1 agosto, 2023

No âmbito da visita do CERLALC ao Brasil, o Centro realizou uma série de entrevistas com diferentes personalidades ligadas às políticas públicas de leitura no referido país.

A seguir apresentamos a entrevista realizada simultaneamente com Eliana Yunes e José Castilho.

CERLALC: Você pode me dizer seus nomes, por favor?

Eliana Yunes: Eliana Yunes, do Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio.

José Castilho: José Castilho, da Universidade do Estado de São Paulo, UNESP e consultor do www.jcastilhoconsultoria.com.br

CERLALC: Eliana, quais você acha que são os principais desafios que o Brasil enfrenta na criação de políticas públicas de leitura?

EY: Acredito que os desafios são muitos, mas podemos pensar que temos um caminho a seguir. Me refiro ao desenho do Plano Nacional de Leitura. Esta é uma política que vem sendo discutida, há muito tempo, com toda a sociedade civil e que conseguiu organizar alguns pontos-chave de trabalho para transformar o pensamento em ação.

Então, acredito que o primeiro desafio é retomar essa experiência, esse conhecimento, para que os diferentes agentes envolvidos possam se capacitar e retomar o contato com as pessoas da sociedade civil e as instituições, até mesmo com o setor privado que apoiou, nos últimos anos, o desastre que ocorreu na cultura, na educação e em outras áreas do país. Portanto, esse contato deve ser retomado. Este é um desafio: voltar e voltar para não ter que fazer as coisas do zero, porque já há progresso.

O outro desafio é a inclusão. Devemos incluir diferentes níveis da população, setores que estiveram isolados e muito mais nos últimos anos. Esta inclusão tem que reconsiderar, inclusive, a contribuição cultural destes setores sociais. Quero dizer, por exemplo, que existe uma cultura dos povos originários, existe uma cultura afrodescendente distante da vida coletiva. É necessário que sejam incluídos no material de leitura.

Penso que outro desafio importante é que as pessoas que vão promover a política da leitura estejam convencidas, tenham consciência do valor político que a leitura tem; porque se se trabalha nesta área, e não se tem consciência, não se tem uma ação coerente, não se tem alegria, não se tem a certeza do contributo que a leitura pode trazer para a cidadania, para a responsabilidade coletiva, penso que pouco poderá ser feito no tempo que temos; quatro anos de governo é muito pouco para alcançar o que precisamos alcançar. Mas se voltarmos às experiências, fortalecemos as pessoas que estamos tentando incluir, acredito que estes podem ser desafios que consigam envolver segmentos da população, que estão comprometidos com a questão da leitura e da cultura através da educação. Em suma, é necessária uma articulação poderosa entre educação e cultura.

CERLALC: Obrigado, Eliana. José, quais você acha que são os desafios que a implementação desses planos representa? Ou você concorda com o que Eliana sugere?

JC: Concordo com a Eliana, principalmente no que ela menciona a respeito do livro, da leitura, da literatura, das bibliotecas e da formação de leitores na perspectiva da educação e da cultura atuando em conjunto.

Gostaria de acrescentar outra pergunta: estou me referindo à questão democrática, à política democrática que está na base de toda essa inclusão, de todas as possibilidades de desenvolvimento na parte da formação leitora, das humanidades, da literatura, da poesia, entre outras. E isto não tem apenas a ver com a situação política no meu país, mas também no nosso continente e talvez em muitas partes do mundo.

Ou seja, estamos em um momento particular no mundo, especialmente no Brasil. Após seis anos de graves problemas, com a Constituição Federal sob ataques contínuos etc.; hoje continuamos lutando contra todos esses ataques que têm matriz fascista e é evidente que hoje temos um desafio democrático de continuar com liberdade, com inclusão, com escuta acima das decisões de um jogo político marcado pela violência e pela ruptura das regras democráticas. Me refiro a ter, pelo menos, um horizonte de política de Estado e não de conveniências particulares de grupos específicos, que costuma ser a diretriz em regimes autoritários.

Então, acredito que estamos numa espécie de jogo político que muitos países do planeta atravessam neste período histórico, o da permanência ou da ruptura democrática. Aqui todos os democratas estão envolvidos nesta tarefa. Esta é uma luta pela democracia, pela equidade e pela liberdade. E a formação dos leitores é parte fundamental dessa batalha.

CERLALC: José, como você acha que podem ser evitados os erros que se geram na formulação desse tipo de política?

J. C..: Acredito que nós inauguramos um método e quando digo nós, estou me referindo a todos que fizeram a história dos últimos 30 anos de formação de leitores no Brasil. A Eliana iniciou um projeto, o PROLER, em 1990, que tratava justamente da metodologia da escuta. Utilizamos e ampliamos na construção do PNLL em 2006 com grande sucesso. Acredito que essa metodologia é a questão que pode evitar erros e lembrar de eventuais tropeços no caminho.

Escutar o que as pessoas estão fazendo, escutar a memória, o que tivemos no passado. Escutar também todos os segmentos da literatura, das bibliotecas; ouvir os escritores, bibliotecários, professores e intelectuais que trabalham com esse tipo de pesquisa. Escutar os leitores, trabalhar nas comunidades, escutar muito. Essa foi a base de muitas coisas boas e duradouras no Brasil. Se pensarmos no PROLER e no PNLL, depois de 30 anos ele continua tendo influência no Brasil, e isso porque há diálogo e as pessoas se identificam com essa metodologia. O problema surge quando não há participação, então ninguém se identificará com uma política ou programa do qual não participou.

Então, acho que escutar é o melhor método para não cometer erros e para fazer algumas correções de rota. É evidente que isso deve ter consequências nas práticas de gestão de políticas públicas: é preciso trabalhar com o que se escuta, é preciso fazer a seleção necessária do que se escuta para as políticas públicas, pois nada pode ser feito de um momento para o outro; e tem que escolher o que é mais prioritário de acordo com as demandas da maioria. Acredito que escutar é melhor para todos e melhor ainda para as boas práticas em políticas públicas, que é precisamente o que estamos fazendo aqui nesta reunião. E foi assim que foi feito naquela época. Me lembro sempre que, para que o texto do Plano Nacional de Leitura de 2006 fosse publicado, tivemos durante um ano quase 200 reuniões presenciais por todo o país. Um ano de escuta. E assim seguimos, escutando, por mais quatro anos em congressos, reuniões, sessões de escutas virtuais permanentes.

CERLALC: Eliana, você concorda que escutar é a melhor forma de evitar erros?

EY: Sim, em princípio esta é uma forma de evitar a exclusão; a escuta e a organização da escuta com respeito à diversidade que temos na América, não só no Brasil, mas numa América que tem populações de diferentes etnias e diferentes histórias e memórias.

Mas acredito que essa execução, para conseguir mais acertos do que erros, dependerá de uma articulação política das lideranças. Se o município próximo da população não agregar efetivamente um programa de leitura, se a secretaria onde estão localizados esses municípios não os reunir em uma rede que possibilite a troca, até mesmo de experiências e das execuções bem-sucedidas que foram feitas, e se o governo federal não realizar reuniões anuais nas quais esses exemplos apareçam para todas as regiões, não acredito que o que buscamos será alcançado no tempo certo.

Há muito compromisso entre regiões e estados. Acredito que haja uma fusão absolutamente necessária entre educação e cultura, porque cultura (vou usar uma expressão que é usada no Brasil), não é a cereja do bolo, mas é a matéria-prima da educação.

Enquanto na educação eles não tomarem a cultura como matéria-prima, estaremos executando uma educação gramatical estreita, uma gramática que não é colocada em prática. Então, eu acho que isso é fundamental. É ainda mais importante envolver sectores como a economia, a indústria, os transportes e o ambiente em todas as práticas de leitura, para evitar que tenhamos coisas graves, por exemplo, como acidentes, acidentes com petróleo no transporte marítimo. Este tipo de incidentes deve-se à falta de leitura e observação das máquinas por parte dos operadores.

Se as pessoas não lerem o que acontece em aparelhos como celulares, televisão, em suas telas e a partir daí tirarem uma interpretação adequada (que é, no fim das contas, o que significa uma leitura), teremos problemas em toda a série social, em toda a série econômica. Então, eu acho que hoje existe uma articulação executiva no nível da política de leitura, ela reconhece que seus cidadãos só são cidadãos se puderem ler o que está ao seu redor, para agir de forma justa. Se isso não for considerado, a educação continuará sendo um privilégio para poucos. Mas se todos forem treinados para ler ao seu redor, vão querer conhecer, não só o mundo, mas também as artes, a ficção de García Márquez, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, por exemplo.

CERLALC: Concordo, a educação e a cultura devem andar de mãos dadas. Eliana, antes você falou sobre entidades. Além do trabalho com Redplanes, como você acha que o CERLALC pode trabalhar para promover essas políticas de leitura em todos os países ibero-americanos e, especificamente, como o Brasil pode contribuir nesta questão?

EY: Imagino que o CERLALC terá uma experiência gigantesca, um histórico documentado e com certeza pode coletar muitos dados. Mas é claro que estamos num mundo de comunicação rápida, no qual muita informação pode ser gerida digitalmente.

Então, acho que o contato direto entre o CERLALC e os executores de uma política de leitura, ou potenciais executores, é essencial porque imagino que nem todos os países terão uma política elaborada e que, portanto, deverão receber apoio para sua execução. Acho que seria interessante ter um diálogo constante entre os executores das políticas de leitura em toda a América Latina, organizado pelo CERLALC, que coloque as pessoas para trocar experiências, que promova o surgimento e a demonstração desses bons projetos, não para que se faça uma cópia, porque acho que cada um tem que ser muito original,  autêntico. Quando se vê algo que foi executado com sucesso em outro lugar, é possível ter outras ideias e com isso criar soluções regionais.

O CERLALC tem que ser o mestre de uma sinfonia que se organize entre os países, com constante troca de experiências. A política tem que sair do papel para passar à execução concreta; para isso é preciso se aproximar das autoridades e de pessoas que conheçam e amem a leitura.

JC: Concordo com a Eliana. Queria resgatar alguns pontos históricos importantes do CERLALC. Estou próximo do Centro há dezenas de anos: primeiro como editor universitário, depois na leitura de políticas de formação e sei que acompanham inclusive trabalhos recentes.

Jeimy Hernandez (Gerente de Leitura, Redação e Bibliotecas) está fazendo um trabalho muito interessante neste momento, é ele quem está trabalhando no mais recente trabalho de resgate da Redplanes, que durante os primeiros anos dos Planos de Leitura estava um pouco ligado ao que é cotidiano e as preocupações do CERLALC e depois não mais. A estratégia da Redplanes foi criada pelo CERLALC desde 2006 e foi muito importante para o desenvolvimento de planos para toda a região. É importante que isso dure, que haja crescimento e estabilidade.

Ao mesmo tempo, acredito que algumas estratégias poderiam ser modificadas para orientar os planos e políticas públicas para a região na orientação do CERLALC com a Redplanes, como, por exemplo, começar a refletir que não basta aderir às diretrizes dos editores ou profissionais do livro, mas olhar mais e melhor para os leitores, para as práticas “multidiversas” de formação de novos leitores que se realizam em toda a região. Organizar melhor os Planos e trabalhos dirigidos pelas instituições nacionais e pelo CERLALC, tendo como ápice de organização e solução de problemas aquilo que os leitores precisam. São eles que devem organizar o resto da grande cadeia do livro e da leitura, e não os autores, editores, distribuidores, bibliotecários, entre outros. Afinal de contas, todos nós produzimos e criamos para os leitores, por isso devemos ouvi-los e suas necessidades e aspirações devem estar no centro da mesa, organizando todo o resto.

Acho muito importante que toda a organização das políticas públicas seja reforçada a partir do leitor. Isso significa, em outros casos, por exemplo, que o trabalho de apoio e formação de professores, como diz Eliana, de todos os planos nacionais que estão em desenvolvimento ou em início, pode ser um pouco mais forte, mais presente. Não uma reunião da Redplanes a cada dois anos, algo mensal nas redes, que tenha publicação, que tenha escuta intersetorial. Acho isso muito importante, para reforçar esse momento de formação de leitura que recomeça, não só no Brasil, mas em muitos países da América-Ibérica. Muitos países estão tentando fazer isso, mas falta alguma coisa e, às vezes, o que falta é que esse “algo” venha de fora, de agências de cooperação como o CERLALC.

Lembremos que tudo isso começou em 2003. Naquela época houve uma provocação, uma proposta do CERLALC e da OEI. Acho que o CERLALC realmente desempenha um papel muito importante, porque tem história, tem gente muito qualificada, pode fazer acordos de cooperação, não tem partido político e, portanto, consegue administrar melhor as coisas.

CERLALC: Ok, José. Propus esta questão em relação aos 20 anos da Redplanes e ao trabalho mais recente sobre políticas públicas para a América Central, denominado “CentroaméricaLeitora”, focado em El Salvador, Honduras e Nicarágua. Então, sim, estamos trabalhando muito de mãos dadas com os nossos países membros. Para terminar, gostaria que me deixassem uma reflexão sobre este evento (Seminário Cultura e Educação).

EY: Acho que é um momento de muita esperança, porque estamos vendo a inclusão de muitas pessoas que se sentiram isoladas das decisões. Nesse sentido, tenho muita esperança. Mas também precisamos ter muita humildade para saber que o tempo é curto e que temos que fazer as coisas passo a passo para ganharmos, nesse período, um espaço maior de participação, inclusão e celebração, porque cultura é celebração. Temos que reconhecer que a cultura não é um adorno social, a cultura é uma fonte de vida. Então espero muito que saiamos daqui com a retomada dos diálogos.

JC: Sim, acredito que o encontro está fazendo algo fundamental, que mencionei agora, sobre a questão da escuta e do diálogo.

A partir disso, acredito que muitas coisas podem ser concebidas, porque é a reconstrução do governo como um todo. Não estamos falando apenas de cultura, estamos falando de todo um Estado brasileiro que nos últimos anos foi prejudicado, prejudicado por forças antidemocráticas. Então, isso é muito importante porque não é qualquer coisa, é como se tivéssemos passado por uma guerra aqui, em que perdemos tempo e agora estamos reconquistando o país.

Perante este tipo de problemas, devemos lembrar que a cultura é um centro fundamental de reconstrução, tanto cultural como educacional. Isso ficou muito claro durante os últimos seis anos de perdas que tivemos que viver. Porque o que mais foi atacado foi justamente a cultura e a educação. Mais do que qualquer outra coisa, a cultura foi destruída no próprio Ministério.

Aqui há uma reconstrução dos bens materiais da instituição do Ministério da Cultura e dos valores do diálogo, da escuta e da valorização de todas as línguas, incluindo a literatura. Então, é um momento difícil, vai custar muito caro para todos, mas como diz a Eliana, temos esperança de que isso possa ser feito, não com esperança de espera, mas de esperança ativa, de ação. Com muito diálogo, acredito que dá para conseguir. Foi um passo importante, está sendo um passo importante e muito interessante, inclusive que o CERLALC está aqui para escutar e viver essa experiência conosco.
CERLALC: Muito obrigado aos dois.